Miloca Mendes vive, trabalha e desloca-se, na maioria dos dias, dentro de dois retângulos, na Mouraria. São poucas as vezes em que sai daqueles dois paralelepípedos paralelos. Não precisa, não quer, não pode. Num dos espaços é cozinheira, dona de um restaurante guineense, mulher das limpezas e mão de obra para todas as tarefas necessárias. No outro é mãe e pai da recém-nascida Leonor, num dos bairros mais tradicionais de Lisboa.
Quando saiu da Guiné-Bissau, em 2006 e com 19 anos, era mulher-criança, inocente. Em Bissau, passava mais tempo a jogar à bola com os rapazes que a pensar nos primeiros beijos ou namorados. Tem saudades destes tempos, muitas saudades. Veio para Portugal para ser operada - um acidente de automóvel fez com que precisasse de uma cirurgia, que não era possível executar no seu país. Uma cicatriz na testa, do lado direito, é a lembrança ainda presente desta viagem não programada.
Hoje, Miloca Mendes é mulher-mãe. Portugal e Espanha amadureceram-na à força. Pensou ficar em Portugal para estudar, não a deixaram. Pensou ter casa para ficar, foi expulsa. Emigrou para Madrid, onde ficou quatro anos em casa do tio Da Costa, a fazer tranças, a ganhar algum dinheiro, a aprender espanhol. Voltou a Portugal, por uma semana, para visitar um irmão recém-chegado. Na Mouraria, conheceu o pai de Leonor e ficou, até hoje. Abriu o restaurante “Entre Amigos”. Muitas das suas coisas ainda estão em Madrid, como ela gosta de relembrar.
Fica galante, pomposa, quando fala da sua comida, dos seus ingredientes africanos. São a corrente que a não deixa esquecer a Guiné-Bissau, a família, os sabores, os cheiros. Uma vida mais simples, onde o vizinho é mais do que uma relação ocasional, o sangue é só um detalhe da biologia, e falar em comida e dinheiro, não torna as pessoas desligadas. Aqui, hoje, cozinha para sobreviver. O pai de Leonor abandonou-a. Agora, quer cozinhar ainda mais. Precisa mais.
Miloca foi acolhida e acarinhada pela Mouraria, tal como muitos outros imigrantes que agora são parte da cultura do bairro. Seria impossível para ela manter o restaurante se não fosse a ajuda da Dona Tina, uma vizinha que apadrinhou Leonor: é a sua ama-avó. Sempre enérgica e com a língua espevitada ajuda a criar a criança ficando com ela enquanto a mãe trabalha. Miloca aproveita cada segundo livre para se escapulir do restaurante e espreitar a filha nos braços da vizinha.
Há dois anos que Miloca acrescenta mais paladar à Mouraria. Muitos clientes entram pela porta número 61, improváveis e fiéis. A Adriana Freire, dona da Cozinha Popular da Mouraria, veio para provar temperos africanos e ficou fã – mais tarde convidou Miloca para cozinhar também no seu espaço. Num lugar onde cada um tem as funções de muitos, Miloca não é apenas mais uma no Mundo Mouraria.