Todos os galegos da geração de Salvino e mais novos já partiram ou morreram. É por isso que em Salvino Garcia Pardelhas, nascido em 1924 na Galiza, e na Mouraria desde 1941, soa tão singelo este tom apocalíptico. Ele já viu o mundo em que nasceu a morrer, e desse sabe qualquer coisa sobre a qual hoje em dia pouco se sabe: quanto pesa um mundo?
O mundo a carvão pesava toneladas. Quando chegou a Lisboa começou por trabalhar numa das duas carvoarias da Rua dos Cavaleiros. Com uma saca de sessenta quilos às costas, a pé, dali até à Morais Soares. Vendido porta a porta, o carvão era o alimento energético da cidade. Salvino não sabe localizar o exato zénite do uso do carvão, mas quando abandonou o ramo, ainda este estava no auge. O petróleo viria depois.
Numa fotografia emoldurada, uma diferença de muitos quilos a mais tornam irreconhecível o magro Salvino de hoje. A voz é firme, nunca hesitante. Adivinha-se nesta voz a robustez física que se vê na foto e sente-se a determinação.
Como antes seu avô e depois seu tio, Salvino veio trabalhar para Lisboa. Tinha 17 anos. A Guerra Civil de Espanha não o deixou passar a fronteira mais cedo. O pai partira para a Argentina quando Salvino tinha 2 anos e nada mais se soube dele. Iam os homens e iam novos, que era preciso “afastar as crianças da mesa”. Ditados em terra de emigração.
Ficavam as mulheres, quando ficavam. A mãe chamava-se Saludina, a avó Josefa. Do milho, mãe e avó faziam a broa. A teologia da avó Josefa parece bater certo com o ofício: “Deus é uma massa excelente que está em toda a parte”. Salvino trabalhou no campo até chegar a Lisboa. E conta que mesmo emigrado, voltava anualmente à Galiza nos tempos de maior azáfama agrícola, para participar nas tarefas sazonais da sua aldeia. Viver para trabalhar e trabalhar para viver, é essa a condição para uma vida feliz.
Quando o tio morreu, em 1945, Salvino herdou o negócio da família. Tornou-se forneiro, na mesma Rua dos Cavaleiros, a primeira que conheceu na cidade. Tinha dois fornos, um armazém de lenha, uma amassadeira. No tempo do avô funcionava o forno de cozer o pão e tinha ali um ponto de venda. O resto era vendido na Costa do Castelo. Não havia carcaças individuais, só pães grandes, por uma razão simples: servia para alimentar famílias numerosas.
Para Salvino o maior motivo de orgulho é outro. Era no seu forno que se torravam as farinhas 33, Amparo, Predilecta, Diamantininha. Homens e mulheres que têm hoje 70 anos começaram por alimentar-se das farinhas que ali torrava. Neste trabalho era ajudado por dois homens e pela mulher, também ela vinda da Galiza, de seu nome Deliciosa. Todos já morreram. Salvino recorda sozinho os muitos quilos de fava, de trigo, de cacau, de açúcar. Lembra-se das sacas de 100 quilos que chegavam à Calçada da Mouraria, pelas seis de manhã. Carregá-las, armazená-las, e depois fazer funcionar o forno, dia e noite, noite e dia. No forno, a pedido dos vizinhos e da “rapaziada” assava-se batata doce.
Salvino deixou o forno e o trabalho duro, aos 70 anos. Entregaria a gestão do forno a um conterrâneo, Manolo Carrera, que o baptizaria de Forno do Alfarrabista. Houve livros como pão para a boca, tertúlias e sopa da fava rica. Hoje ainda se serve esta sopa, por encomenda, Manolo deixou a receita e o restaurante ao cuidado de sócios portugueses. Regressou à Galiza, destino comum entre galegos na diáspora. Salvino, a chegar aos 90 anos, resolve assim o seu “apego à terra onde se nasce”: é seis meses galego e seis meses um português, lisboeta, da Mouraria.